segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O frio daquelas terras durante as tríplice lua era quase insuportável. O vento em meio a escuridão movimentava as madeixas púrpuras e longas que ora cobriam, ora mostravam cálidos olhos . Era o encontro de dois predadores. Um deles tão astucioso em sua capacidade de atrair a presa, tinha a vantagem da perspicácia ser intrínseca a sua natureza devoradora. Enquanto o outro tornou-se predador, aprendeu em sua peregrinação a desenvolver bem a percepção, algo necessário a sua sobrevivência. Não nasceu predador, ou melhor predadora, pois tratava-se de uma ''Thaira'', dama mística das florestas sombrias. Tais criaturas não possuiam poderes mágicos, viviam para servir ao seu povo com a doçura de suas almas. Anic era o seu nome, e sua aparência frágil e delicada ocultava a grandeza de sua força.
Em uma madrugada de três luas, colocou a sua tunica e descalça caminhou por entre os limites de sua terra, movida por uma intuição que chegava a causar-lhe mal estar. Sentiu uma força abruptmente lançar-lhe contra uma árvore sagrada da floresta. Ao abrir os olhos depois de tal movimento inesperado percebeu que a tão poucos centímetros de seu corpo encontrava-se um inimigo tenebroso. Porém, aquela dama mística percebeu que tal ser nefasto sangrava através de um talho no peito. Desejou curar a ferida, não poderia agir de maneira contrária a sua natureza, embora em sua peregrinação tenha se tornado uma guerreira, conhecendo todos os perigos de ignorar a percepção.
Alguns silenciosos minutos se passaram enquanto as almas tão opostas se tocavam com os olhos. Então, o ser obscuro baixou o capuz de Anic e observou com certa admiração a cor púrpura de seus cabelos longos, as formas de um corpo pequeno e leve. Anic não temia, apenas observava o sangue escorrer por entre o peito daquele estranho. Ela sabia que precisava matá-lo ou seria ela quem morreria brevemente. Mas o sangue que jovarrava lhe hipinotizava. Era uma ''Thaira'', uma serva e como tal tirou de suas vestes um líquido verde em um recipiente pequeno e molhou a ferida aberta . Ali mesmo, exposta ao frio e a escuridão a criatura obscura ao sentir o toque das mãos daquela dama esquentar-lhe a ferida, aproximou-se o bastante para que as faces quase se tocassem. Passou a mão pelo pescoço de Anic e sintiu o amuleto que ela sempre carregava consigo. E pelo cordão que segurava a pedra mística a puxou para mais perto de si e os lábios inimigos se tocaram delicadamente. E por alguns segundos permaneceram quietos, até que o calor de ambos os lábios foi gradativamente aumentando e cedendo lugar a movimentos sincronizados, harmoniosos. Como se a jovem serva tivesse entrado em transe profundo, acordara sob a luz da primeira lua daquela terra onde não havia o dia. E imediatamente sentira falta de seu amuleto. Sentiu uma fúria crescer dentro de si e sentimentos desconhecidos a impulsionaram a agir racionalmente. Havia lembrado de tudo, havia sido lesada, ludibriada, subestimada. E imediatamente ultrapassou os limites de sua terra seguindo o rastro de quem desejava derramar o sangue. Na terceira lua , depois de muito caminhar, avistou uma figura que embora só tivesse visto uma vez lembrava cada detalhe de seu aspecto. A criatura sombria virou-se , novamente os olhos em chamas se encontraram. O ser nefasto aproximou-se da pequena Thaira com seu poder de persuasão e sagacidade de predador, a envolveu em seus braços não desviando os seus olhos dos dela. Anic retirou de dentro de suas vestes uma espada para intimidar o inimigo que por sua vez usou a ponta do instrumento para abrir novamente o talho no peito fazendo-o sangrar. Mais uma vez Anic sentia-se atraída por aquela fonte de sangue a jorrar, baixou o braço levemente, o suficiente para a criatura nefasta aproximar-se de sua face. Com tal movimento a jovem de cabelos púrpura reconhecera o seu amuleto juntamente com muitos outros no pescoço daquele que tão próximo ficava. Era o encontro de dois predadores, um por natureza outro por ocasião. E assim, com faces tão próximas, que os lábios quase se tocaramm quando Anic cravou sua espada no peito daquele em quem confiara. Sua túnica era banhada pelo sangue de seu inimigo que aos poucos encontrava o chão daquele lugar que desconhecia o dia. Anic contrariou sua natureza, feriu mortalmente o ser obscuro. Sabia ter feito o necessário, mas desejava ter optado pelo contrário. E em meio as contradições de sua alma, guardou a espada, ajoelhou-se próximo ao corpo e sentiu através de uma lembrança que em tais lábios que agora estavam frios, haviam o poder de neutralizar quem os tocasse. Lábios carmesim que foram molhados não mais pela saliva daquela, mas pelas lágrimas que brotaram de seus olhos. Naquele momento aquele ser místico da floresta conhecera pela primeira vez as águas estranhas que os olhos escondem .

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