quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Minha mãe diz que foi coisa de criança. Eu discordo. Acredito que a questão é bem mais delicada e profunda do que uma simples traquinagem infantil. Essa é uma história sobre pedras, identidade e resistência.


Eu quase fiquei careca há dois anos atrás. Foi quando percebi que era preciso romper com o mundo para realmente ser livre. Enquanto  as mechas de cabelo caiam aos montes no chão do banheiro ,  decidi fazer das pedras -aquelas velhas e malditas pedras-  um tumulo para enterrar  a mulher que  jamais seria. 

Não era só meu corpo reagindo a agressão, era minha consciência também. O espelho e  as fotos que me envaideciam , na verdade  enganavam. Nenhum deles refletiam o que eu realmente era, mas o que me disseram para ser.  Não se tratava de vaidade , mas de negação. 

  Nada de cabeleireiro! Cansada de tentar amenizar os estragos nas madeixas, cortei  o cabelo bem curto e fui pra faculdade. Eliminei a química que fragilizava os fios e conquistei a alforria.   Era o fim de uma história e o começo de outra. 

Poderia dizer que o processo de negação de minha real identidade como mulher negra começou no colégio quando era apelidada de  cabelo de espanta Jesus. (A propósito acho que Valfredo merece os créditos pela criatividade. )  Mas não foi. As raízes são bem mais profundas e a escola é só um reflexo da pressão social. 

As lembranças mais fortes que tenho da infância na rua são motivo de surpresa para as poucas pessoas que conhecem a  história. E justamente pela reação que causa aos que sabem que resolvi escrever sobre essa época. Parece inconcebível para alguns que algo do gênero tenha acontecido em um país como o nosso, no início do século XXI. Lamento se vou destruir a ilusão de alguns. 


No início eram 3 crianças/adolescentes - brancos e de classe média-  depois o grupo aumentou. . Eu e minha irmã voltávamos para casa numa tarde de domingo com o carvão para o churrasco. E de repente começaram  a nos atingir com pedras. Pedras ! O saco pesado dificultou que corrêssemos mais rápido. Um deles ainda era criança e estava com uma baladeira. Só pararam depois que entramos em casa. A única coisa que disseram durante  a agressão foi : Negrinha !

Infelizmente esse seria o primeiro dos muitos dias de perseguição. Cada um com seu método bizarro de provocar . Uns participavam ativamente, outros só observavam.  Parecia a revolta da elite branca por  na rua morar uma família fora do padrão.  Eles, filhos de pessoas públicas  da sociedade petrolinense,  não se contentavam em nos barrar e lançar pedras sempre que passávamos.  E o discurso deles era repetitivo : negrinhas !


Quando não esperavam a gente passar na rua,   se aproximavam . De cima da laje de suas residências gritavam ofensas e abaixavam as calças. O mais  atrevido chegou a entrar no quintal da minha casa para gritar a ladainha de sempre : negrinhas !  Para o azar do rapazinho da turma, meu pai flagrou um dos dias de invasão e daí por diante tudo começou a melhorar. Voltamos a sair de casa sem medo.

Seria mais aliviante dizer que merecemos. Talvez mais aceitável pensar que quase todas as crianças  e adolescentes da rua nos odiava por um motívo plausível. Mas nunca conversamos, eles nem sequer sabiam nossos nomes, nunca fomos amigos, nunca discutimos, nunca nos conhecemos. Havia um abismo estre nós  e tudo se resumia a nossa cor. 

Não precisei fazer terapia por causa disso, nem minhas irmãs. Nunca estive  em um psicólogo. Sem dramas continuei seguindo minha vida como uma garota normal. Mas se ilude quem pensa que episódios como esse não afetam a formação da identidade de alguém. Não estou afirmando que não tenho boas memórias da infância e adolescência . Tenho imensas saudades da época do colégio, dos amigos, de tudo que vivi.  O objetivo aqui não é vitimizar , mas  mostrar as raízes da negação da identidade negra. 

O  racismo,( que por sinal ,uma grande maioria  das pessoas afirma não existir ou ser uma invenção)  estava em todos os lugares : na escola, na igreja, na faculdade, na família e na televisão . "você não penteou o cabelo hoje? " seu pai só é preto, mas é gente boa", "aff que tranças horríveis, fulana acabou com o cabelo", " trancinha é coisa do demônio", " não vou sair no sol não que estou ficando preto", Chico é um nego da alma branca, " "é negra, mas é bonita", " tinha que ser negro mesmo". Fora da rua as pedras tinham vários formatos e cores. 

A sociedade convence que é preciso se enquadrar nos padrões impostos.  As mensagens são bem claras e ninguém quer ser excluído. Daí começa a agressão  ao corpo. Modifica-se cabelo, nariz, e tudo que incomoda para satisfazer não um desejo individual, mas coletivo e insano de homogenização. Por que será que as pessoas não estão felizes e satisfeitas com o que são ? Porque existe pessoas como a  gestora que impediu o pequeno Lucas de  8 anos de ser matriculado na escola por causa do seu cabelo Black Power. 


Não é fantasia ! É realidade. É isso que me preocupa. Se a escola deveria  formar cidadãos politizados