Retalhos de uma boneca
Inanimada. Esquecida em um canto qualquer do teu mundo. As cores de meu tecido não mais te alegram e os meus olhos já não atraem os abraços cálidos que antes de dormir me davas. Fui o travesseiro que abrigou os sonhos mais simples e ousados que faziam vibrar o teu coração. Não me ausentei, nem memso na tua ira, mantive-me quieta sob a escuridão de teu quarto, observando-te com paciência, aguardando ficar branda a tua alma. Fui os ouvidos fiéis das pronúncias tuas e algumas lágrimas de teu âmago molharam a minha roupa. Como era belo o teu sorriso, os teus gracejos e ataques repentinos de saudade. Saudade do conforto de meu algodão, das minhas costuras. As vezes me apertava de maneira tão voraz que me confundia, não sabia ao certo se era a tua maneira rude de falar que precisava de mim ou se era apenas carência de um alguém que não conseguia lidar com as próprias emoções.
Eu desejei falar, sair da inércia de minhas limitações, mas me mantive estática, conhecer os teus detalhes me satisfazia. Meus sentimentos eram invisíveis, contidos, escusos. Fiz-me tua, tua companhia, tua boneca, teu anjo, teu refúgio. Quis te tocar, mas era você que me tocava. Eu era apenas um depósito de teu ser implícito. Vi a tua verdadeira face, aquela que somente a mim poderia mostrar. Me controlei infinitas vezes para não ultrapassar os limites de minha condição.
Ensinaste-me a ser humana, teus atos rasgaram meu pano fazendo com que de um amontoado de tecidos surgissem labaredas. A porcelana do meu rosto ruborizou ao tocar tua pele quente . Ser de carne era uma maneira perigosa e ntensa de viver. A ingenuidade de minha essência se mesclava a esse novo mundo, o universo de tuas sombras e divindade. Experimentei a sensação de sair da embalagem, de ser acalentada, provada, tentada. Adormecestes em meus braços e eu me abriguei nos teus mesmo quando tua cama estava vazia.
Hoje não reconheço o lugar onde me deixastes, não é mais familiar, talvez nem seja seguro. Não tem o perfume de teu quarto nem a maciez de teu lençol . Não consigo mais ouvir os teus passos, nem os sorrisos sarcásticos. Nem sinto a tua respiração se aproximar. Não sabia aonde estava me levando, mas confiei piamente em teus pés. E de súbito tuas mãos soltaram as minhas. Nenhuma palavra, nenhum toque, nenhum olhar. Apenas te vi partir e sem alarde recebi uma rajada de sensações tão estranhas e incomuns. Não compreendi ainda se fui tão inútil, tão sem valor, ou se ser uma boneca sua entediou teu instinto versátil.
Não reconheço o lugar, nem ousei sair de onde me deixaste. As vezes fica escuro e neva. Meus nobres tecidos viraram retalhos. Passará algum tempo até que esses rasgos que expõe meu algodão se fechem, sejam costurados. Enquanto isso , eu silenciosamente espero surgir o calor da luz que secará a lágrima que escorre do rosto cada vez que espero uma única demontração de qeu em algum instante daquele tempo eu fui alguém e não algo.