sábado, 6 de junho de 2015

Contos criptografados - qualquer semelhança coma realidade é puro delírio


Deixou um pouco de verdades em casa porque a rua é dos malandros. Boêmio a procura de sentido esvaziou-se do dia e encheu-se de noite. A cada passo em busca da lua um rastro de pó, um resto de Dó e um pouco de nó nos cachos recém cortados.

Em busca de um porto para existência, de eloquência para vida e um gole de bebida, deixou-se ficar a beira do cais, ouvindo os ais de um violão afinado. Ali, o som rompeu o silêncio do peito e ali se fez perfeito recanto para poesia como letra e melodia de uma canção triste.

Voz de trovão a beira do rio e o arrepio do sereno na pele morena. Malandro menino, libertino de lábios apetitosos atraindo para caminhos tortuosos mulheres desavisadas. A promiscua vida de liberdade, um passo em falso para a vaidade, um atalho para a solidão.

Na mesa molhada com cerveja gelada a moça sentada absorvia a essência de Kaiak. Bebendo devagar a divagar sobre a vida, esquecendo as feridas e os abismos cotidianos, a menina com seus enganos, aprendeu também a malandrear.

Que encontro astuto e covarde. Pôs frente a frente duas metades de vidas vazias. Duas almas baratas e perdidas. Dois poços de ilusão. Ele livre por escolha, ela presa por opção. Ela serva do tempo e ele senhor da distração.

E atravessaram pontes, olhando pro horizonte na madrugada. Duas doses de incertezas trilhando juntos a mesma estrada. Dois copos de bebidas distintas, duas carnes famintas, dois timbres desafinados em garganta rasgada.

Ah quem sabe de dois boêmios bandidos senão as ruas vazias e a escuridão de concreto? Ah quem pode testemunhar duas sombras a vagar por caminhos desertos? Pois tem delícias nesse mundo, que só coração vagabundo é capaz de conhecer.

Quando lábios também são beijos, quando beijo também é chama e o peito inflama com febre de desejo. Quando o corpo quer es render aos apelos da lúdica vontade, mas conformado resiste, pois um só insiste quando os dois decidem se entregar.

Só, e somente só vê-se a história inacabada, incompleta e rasurada de dois estranhos peregrinos. Ele, cachos voando, insatisfeito voltando, pra trilha mágica da realidade. Ela na companhia da mentira, retornando para a vida, para dormir com meias verdades.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Minha mãe diz que foi coisa de criança. Eu discordo. Acredito que a questão é bem mais delicada e profunda do que uma simples traquinagem infantil. Essa é uma história sobre pedras, identidade e resistência.


Eu quase fiquei careca há dois anos atrás. Foi quando percebi que era preciso romper com o mundo para realmente ser livre. Enquanto  as mechas de cabelo caiam aos montes no chão do banheiro ,  decidi fazer das pedras -aquelas velhas e malditas pedras-  um tumulo para enterrar  a mulher que  jamais seria. 

Não era só meu corpo reagindo a agressão, era minha consciência também. O espelho e  as fotos que me envaideciam , na verdade  enganavam. Nenhum deles refletiam o que eu realmente era, mas o que me disseram para ser.  Não se tratava de vaidade , mas de negação. 

  Nada de cabeleireiro! Cansada de tentar amenizar os estragos nas madeixas, cortei  o cabelo bem curto e fui pra faculdade. Eliminei a química que fragilizava os fios e conquistei a alforria.   Era o fim de uma história e o começo de outra. 

Poderia dizer que o processo de negação de minha real identidade como mulher negra começou no colégio quando era apelidada de  cabelo de espanta Jesus. (A propósito acho que Valfredo merece os créditos pela criatividade. )  Mas não foi. As raízes são bem mais profundas e a escola é só um reflexo da pressão social. 

As lembranças mais fortes que tenho da infância na rua são motivo de surpresa para as poucas pessoas que conhecem a  história. E justamente pela reação que causa aos que sabem que resolvi escrever sobre essa época. Parece inconcebível para alguns que algo do gênero tenha acontecido em um país como o nosso, no início do século XXI. Lamento se vou destruir a ilusão de alguns. 


No início eram 3 crianças/adolescentes - brancos e de classe média-  depois o grupo aumentou. . Eu e minha irmã voltávamos para casa numa tarde de domingo com o carvão para o churrasco. E de repente começaram  a nos atingir com pedras. Pedras ! O saco pesado dificultou que corrêssemos mais rápido. Um deles ainda era criança e estava com uma baladeira. Só pararam depois que entramos em casa. A única coisa que disseram durante  a agressão foi : Negrinha !

Infelizmente esse seria o primeiro dos muitos dias de perseguição. Cada um com seu método bizarro de provocar . Uns participavam ativamente, outros só observavam.  Parecia a revolta da elite branca por  na rua morar uma família fora do padrão.  Eles, filhos de pessoas públicas  da sociedade petrolinense,  não se contentavam em nos barrar e lançar pedras sempre que passávamos.  E o discurso deles era repetitivo : negrinhas !


Quando não esperavam a gente passar na rua,   se aproximavam . De cima da laje de suas residências gritavam ofensas e abaixavam as calças. O mais  atrevido chegou a entrar no quintal da minha casa para gritar a ladainha de sempre : negrinhas !  Para o azar do rapazinho da turma, meu pai flagrou um dos dias de invasão e daí por diante tudo começou a melhorar. Voltamos a sair de casa sem medo.

Seria mais aliviante dizer que merecemos. Talvez mais aceitável pensar que quase todas as crianças  e adolescentes da rua nos odiava por um motívo plausível. Mas nunca conversamos, eles nem sequer sabiam nossos nomes, nunca fomos amigos, nunca discutimos, nunca nos conhecemos. Havia um abismo estre nós  e tudo se resumia a nossa cor. 

Não precisei fazer terapia por causa disso, nem minhas irmãs. Nunca estive  em um psicólogo. Sem dramas continuei seguindo minha vida como uma garota normal. Mas se ilude quem pensa que episódios como esse não afetam a formação da identidade de alguém. Não estou afirmando que não tenho boas memórias da infância e adolescência . Tenho imensas saudades da época do colégio, dos amigos, de tudo que vivi.  O objetivo aqui não é vitimizar , mas  mostrar as raízes da negação da identidade negra. 

O  racismo,( que por sinal ,uma grande maioria  das pessoas afirma não existir ou ser uma invenção)  estava em todos os lugares : na escola, na igreja, na faculdade, na família e na televisão . "você não penteou o cabelo hoje? " seu pai só é preto, mas é gente boa", "aff que tranças horríveis, fulana acabou com o cabelo", " trancinha é coisa do demônio", " não vou sair no sol não que estou ficando preto", Chico é um nego da alma branca, " "é negra, mas é bonita", " tinha que ser negro mesmo". Fora da rua as pedras tinham vários formatos e cores. 

A sociedade convence que é preciso se enquadrar nos padrões impostos.  As mensagens são bem claras e ninguém quer ser excluído. Daí começa a agressão  ao corpo. Modifica-se cabelo, nariz, e tudo que incomoda para satisfazer não um desejo individual, mas coletivo e insano de homogenização. Por que será que as pessoas não estão felizes e satisfeitas com o que são ? Porque existe pessoas como a  gestora que impediu o pequeno Lucas de  8 anos de ser matriculado na escola por causa do seu cabelo Black Power. 


Não é fantasia ! É realidade. É isso que me preocupa. Se a escola deveria  formar cidadãos politizados












domingo, 14 de julho de 2013

Esse bicho
Que exala odores
De fétido hálito
É  podridão
Vomita impropérios
E regurgita injúrias

Esse bicho
De músculo pútreo
Devora sobras
Ingere imundícies
Mastiga excrementos
Arrota detritos

Esse bicho
De úlceras gangrenadas
É carne decomposta
Rumina ácidos
Que corroem os tecidos
E dilaceram a língua

Esse bicho
Que abriga vermes
Nutre micróbios
Larvas e insetos
Residentes que habitam
O pútrido coração

Esse bicho
De ossos ressequidos
Saliva escárnios
Cospe esconjuros
Expira veneno
Contamina, extermina

Esse bicho
Cadáver, moribundo
Carniça da carniça
Entre corvos e abutres
Carcaça faminta
É matéria morta

Esse bicho
Desprezível criatura
Coberta de chagas
Eczemas, edemas
É alma leproza
Se banha em dejetos
Escória animal

sábado, 25 de maio de 2013

                                                                     Afogado


Aquelas últimas gotas de chuva molharam o travesseiro e inundaram o quarto. Não era como a garoa suave que caia na rua. Era tempestade !

O sorriso que enfeitou de carmesim a esperança quase morta, convidou a insensatez para uma dança suicida.

E no deserto do salão havia sangue percorrendo as notas musicais. Havia também o aroma gostoso da noite testemunhando o gélido toque.

Os passos incertos e apressados do desejo tentando equilibrar-se nas falhas do caminho, colocou-se na ponta da razão e abraçou a loucura.

E abriu-se uma cratera profunda entre os olhares com o impacto da música proibida. As borboletas entraram de uma só vez na alma, formando o panapaná do sentir.

No palco vazio o sorriso decidiu morrer. Sucumbiu a morte, esqueceu a esperança. Apagou a cor dos lábios. Fez nos olhos chover e na tempestade resolveu se afogar.


Poetisa Insana


                                                                       Delírio


Por entre  a  persiana, o sol invadiu o quarto e alcançou o rosto bonito do moço que dormia. Fez uma careta engraçada de quem teve um sonho interrompido. De fato não queria acordar. Que estranho! Teve a impressão de que ouvira passos leves e rápidos se distanciando. 


Bocejou lentamente como se não tivesse pretensões de sair do abraço macio daquele edredom. Virou para o outro lado e apertou o travesseiro com uma preguiça que chegou a ser charmosa.

Passou a mão nos cabelos bagunçados enquanto tentava decifrar o objeto que estava no criado mudo. Um pequeno  livro de capa grossa com  aspecto envelhecido. Parecia na verdade, uma antiguidade. Sorriu e imaginou que ainda estivesse sonhando.


A figura que seus lábios formaram com aquele sorriso silencioso era simplesmente convidativa. Os lábios tão bem delineados, num tom rosa perfeito, estavam mais corados do que de costume.

Percebeu depois de alguns minutos com os olhos fechados, um aroma diferente nos lençóis. Não era muito bom em distinguir fragrâncias, mas tinha certeza que era cheiro de lavanda. Mas como podia ser? Não era esse seu perfume!


Virou-se imediatamente para o lado oposto e viu uma taça de vinho no outro criado mudo,  entre o despertador e a luminária. Tudo estava muito confuso, porque  ele não tomava esse tipo de bebida e nem tinha recebido visitas na noite anterior.

Passou a mão no rosto tentando arrancar da memória algum sinal do que aquilo significava. Sentou por instantes na cama de onde viu um vestido vermelho no chão próximo ao banheiro. Então levantou de súbito  em direção aquela veste. Ao tocar o tecido, sentiu a sua maciez e irresistivelmente levou ao rosto. O mesmo cheiro de lavanda invadira suas narinas. 


E como encanto fora tomado por lembranças. De repente as paredes fizeram-se pinturas como se estivesse em uma galeria de arte. Cada parte daquele lugar assemelhava-se a Caravaggios.

No jogo de luz e sombras a figura de uma mulher se destacava e eu corpo despido tocado por outro protagonizava uma cena inebriante de entrega absoluta. Ao observar isto, quase pode sentir as unhas daquela dama cravadas na sua nuca. Na boca a saliva transformara-se em vinho. 


Os olhos continuaram  a percorrer as imagens seguintes fazendo toda a pele ficar ouriçada. Os lábios carmesim da misteriosa mulher, lhe provocavam sede. Queria arrancá-la daquela tela e desafiar o seu lhar provocador num duelo.

Desejou sair do cenário barroco para transitar no surrealismo. Pensou em fogo. Ficou em brasa. Ardeu em chamas. Virou o rosto, mas não conseguia temer o tremor de suas carnes. Se não fosse sonho, certamente era loucura, pensara.


Mas os vestígios ali presentes lhe contradiziam. Dirigiu-se ao banheiro, lavou o rosto e tentou evocar inutilmente os indícios de que aquilo era definitivamente sonho. No espelho pode ver desenhada na alva pele de seu peito o percurso lúdico de unhas. Marcas de dentes ornamentavam seu pescoço de cima a baixo.

E um misto de sensações lhe possuiu. O diálogo entre os sentidos, a dança de lavanda com as imagens, o sabor do vinho e o calor de seu corpo embriagavam-no.


Voltou para a cama com todas aquelas cenas a sua volta. Atordoado, atormentado, possuído. Ela estava ali. Sim ! A porta estava entreaberta. Lembrou-se de ter ouvido passos ao acordar. Procurou-a. Precisava tocá-la. Senti-la, tê-la.Alcançou a taça de vinho e avistou a marca de batom ,  um  vestígio de quem ali esteve. Resolveu abrir o pequeno livro ao Aldo da cama.  Na verdade, parecia mais um diário antigo. Nas folhas amareladas, com uma caligrafia escrita  á pena, versos insanos instigantes e convidativos. Cada poema lido fazia-o perder um pouco o fôlego. 


Ofegante e extasiado, quase sucumbiu a loucura. Leu nas últimas linhas daquelas folhas envelhecidas a assinatura : Desejo !
















quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013


Os eleitos 




Não sei como funciona essa mágica que faz as vidas se encontrarem, mas quem está no comando certamente manda muito bem e deve ser tipo um Dumbledore. Incrível como fica sempre impregnado em nós o perfume de quem passou, como um indício, um vestígio de que somos a soma dos corações que tivemos o privilégio de saber que existem, de saber que tipo  de música produzem ao baterem.
Essas marcas invisíveis que cada alma deixa uma na outra é tão sutilmente tatuada que muitos nem percebem o quanto são constituídos  dos inúmeros toques trocados ao longo da vida com seus semelhantes.


O que os místicos costumam chamar de destino e os céticos definem como acaso, eu prefiro pensar que é poesia. Há tanta gente no mundo e tantas possibilidades de encontro, mas por alguma razão especial que foge a compreensão, a vida nos apresenta os eleitos, (que pode ser tanto o vizinho como alguém que mora no outro lado do mundo. )


E parece que cada encontro é uma rima. É fantástico, como uma colcha de retalhos bordada por olhares, gestos e palavras. Todos deixam perfume, mas alguns são versos tão belos! Conseguem ser sensíveis, encantadores, gentis, inteligentes e ainda possuidores de um sorriso lindo. E como é lindo saber que há pessoas assim - estando ou não ao alcance do nosso abraço.


Esses nos alcançam sem esforço físico porque vão direto na nossa alma. Esses nos despertam esperança na humanidade, porque mantém o amor pela família, a consideração pelos amigos e o respeito pelas diferenças em dia.  Pode ser que nem sequer suspeitem do quanto admiramos o jeito que conduzem suas vidas. Pessoas assim são aquelas que além de sorrir lindamente adoram  roubar sorrisos também.


Talvez eu seja apenas uma poetisa insana, que vê brilho em tudo. Mas que mal há em sentir que toda vida é preciosa e que admirá-las ainda que distante é uma dádiva? Que mal há em colecionar pulsar de corações? Que mal há em querer ver a aura de quem o grande mago-  responsável pela poesia da vida - nos apresentou?


Penso que  viver é isso: é desenhar, pintar, colorir a alma dos que vão passando pelo caminho. É também deixar-se pintar. É deixar-se tocar. Eu admiro quem doa sorrisos e não pede nada em troca. E admiro mais ainda quem dedica seu tempo para fazer os outros sorrirem  pelo simples prazer de saber que está colorindo a vida de alguém, ainda que seja de um estranho.