Delírio
Por entre a
persiana, o sol invadiu o quarto e alcançou o rosto bonito do moço que
dormia. Fez uma careta engraçada de quem teve um sonho interrompido. De fato
não queria acordar. Que estranho! Teve a impressão de que ouvira passos leves e
rápidos se distanciando.
Bocejou lentamente como se não
tivesse pretensões de sair do abraço macio daquele edredom. Virou para o outro
lado e apertou o travesseiro com uma preguiça que chegou a ser charmosa.
Passou a mão nos cabelos
bagunçados enquanto tentava decifrar o objeto que estava no criado mudo. Um
pequeno livro de capa grossa com aspecto envelhecido. Parecia na verdade, uma
antiguidade. Sorriu e imaginou que ainda estivesse sonhando.
A figura que seus lábios formaram
com aquele sorriso silencioso era simplesmente convidativa. Os lábios tão bem
delineados, num tom rosa perfeito, estavam mais corados do que de costume.
Percebeu depois de alguns minutos
com os olhos fechados, um aroma diferente nos lençóis. Não era muito bom em
distinguir fragrâncias, mas tinha certeza que era cheiro de lavanda. Mas como
podia ser? Não era esse seu perfume!
Virou-se imediatamente para o
lado oposto e viu uma taça de vinho no outro criado mudo, entre o despertador e a luminária. Tudo
estava muito confuso, porque ele não
tomava esse tipo de bebida e nem tinha recebido visitas na noite anterior.
Passou a mão no rosto tentando
arrancar da memória algum sinal do que aquilo significava. Sentou por instantes
na cama de onde viu um vestido vermelho no chão próximo ao banheiro. Então levantou
de súbito em direção aquela veste. Ao
tocar o tecido, sentiu a sua maciez e irresistivelmente levou ao rosto. O mesmo
cheiro de lavanda invadira suas narinas.
E como encanto fora tomado por
lembranças. De repente as paredes fizeram-se pinturas como se estivesse em uma
galeria de arte. Cada parte daquele lugar assemelhava-se a Caravaggios.
No jogo de luz e sombras a figura
de uma mulher se destacava e eu corpo despido tocado por outro protagonizava
uma cena inebriante de entrega absoluta. Ao observar isto, quase pode sentir as
unhas daquela dama cravadas na sua nuca. Na boca a saliva transformara-se em
vinho.
Os olhos continuaram a percorrer as imagens seguintes fazendo toda
a pele ficar ouriçada. Os lábios carmesim da misteriosa mulher, lhe provocavam
sede. Queria arrancá-la daquela tela e desafiar o seu lhar provocador num
duelo.
Desejou sair do cenário barroco
para transitar no surrealismo. Pensou em fogo. Ficou em brasa. Ardeu em chamas.
Virou o rosto, mas não conseguia temer o tremor de suas carnes. Se não fosse
sonho, certamente era loucura, pensara.
Mas os vestígios ali presentes
lhe contradiziam. Dirigiu-se ao banheiro, lavou o rosto e tentou evocar
inutilmente os indícios de que aquilo era definitivamente sonho. No espelho
pode ver desenhada na alva pele de seu peito o percurso lúdico de unhas. Marcas
de dentes ornamentavam seu pescoço de cima a baixo.
E um misto de sensações lhe
possuiu. O diálogo entre os sentidos, a dança de lavanda com as imagens, o
sabor do vinho e o calor de seu corpo embriagavam-no.
Voltou para a cama com todas
aquelas cenas a sua volta. Atordoado, atormentado, possuído. Ela estava ali.
Sim ! A porta estava entreaberta. Lembrou-se de ter ouvido passos ao acordar.
Procurou-a. Precisava tocá-la. Senti-la, tê-la.Alcançou a taça de vinho e
avistou a marca de batom , um vestígio de quem ali esteve. Resolveu abrir o
pequeno livro ao Aldo da cama. Na
verdade, parecia mais um diário antigo. Nas folhas amareladas, com uma
caligrafia escrita á pena, versos
insanos instigantes e convidativos. Cada poema lido fazia-o perder um pouco o
fôlego.
Ofegante e extasiado, quase
sucumbiu a loucura. Leu nas últimas linhas daquelas folhas envelhecidas a
assinatura : Desejo !
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